terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Dimensão aérea

Quando viajo de avião, dou por mim a pensar em como somos diferentes lá em cima. Lá em cima, não somos seres humanos normais, lá em cima oferecem-nos uma dose alimentícia que mais parece uma mini-bateria com sabor a hospital. Mas não é por isso que não me sinto um ser humano normal quando percorro os céus da Terra. Na verdade, é muito estranha a sensação de estar a voar numa dimensão que sinto não ser a dimensão humana. É uma luta contra a gravidade onde pareço fora do local onde tudo se passa, do lugar da minha infância e da morte dos meus pais.
Na verdade, tudo o que mais entusiasma o ser humano são trivialidades (vistas cá de cima), como entrar numa faculdade ou ver um jogo de futebol, assim como o que mais assusta nem é o reino dos porquês, o que existe além do nível das águas do mar, antes o facto de a filha chegar tarde da discoteca ou os latidos do cão. Tudo o que está cá em baixo, tão perto, tão óbvio, tão mesquinho e material. Vejamos: as estrelas do cinema e da tv estão lá em baixo, mesmo sendo estrelas. E sinto-me de facto num local que me seria inacessível à partida. Olho para baixo e vejo minúsculas casas e estradas que parecem irreais. Estarei mesmo lá em cima? Parece uma situação imaginária. Lá em baixo estão as pessoas com as suas alegrias e tristezas e amores, tudo o que importa na vida. Está tudo lá em baixo. Até as doenças e as tristezas e as traições. Lá está a vizinha com a sua casa arejada e os seus bibelots da sala sempre muito brilhantes. Para que serve aquilo, qual a sua importância e valor? Quanto valerá, visto lá de cima o Buda que tenho na sala? Sei que lá em cima não vale nada. Lá está também o meu professor de Teoria da Literatura da faculdade, com a sua sapiência brilhante como os bibelots, mas que não se vê lá do alto, da janela do meu avião.
Tudo parece muito pouco verosímil. Estamos ali, fora do mundo real, numa dimensão que nos parece, cá de baixo, inacessível. Mas é estranho verificar que toda a gente se comporta e reage como se nada fosse. As pessoas riem e falam e olham para o fundo do corredor em frente, quando o avião trepida. E comem as suas pequenas baterias em forma de pãezinhos minúsculos como os pratinhos que parecem para gatos. Tudo é leve lá em cima. A leveza não afecta os viajantes. Nem devem dar pelo facto de estarem noutra dimensão, preocupados que estão com as suas vidinhas, com os tios de França ou com a consulta do urologista. Tudo é muito pesado na mente deles. Tudo gravita. Como já muitos intelectuais do passado concluiram, o Homem é de facto um ser material, que não abandona a terra, porque inconscientemente o não consegue fazer.
E o avião aterra em Veneza e a leveza ficou lá em cima. Veneza parece um local de outro mundo e de outra dimensão. Acho que podia bem ser uma cidade aérea. Mas está cá em baixo, onde estão os bibelots.

4 comentários:

Ana Paula Sena disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Excelente ensaio...

Anónimo disse...

Parabéns pelo blog!! mto bom...

Anónimo disse...

" A insustentável leveza do ser" já escrevia Kundera... Os seres da Terra gravitam e vivem á margem do que é a verdadeira essência... são poucos os eleitos que vêem e os que conseguem ver sofrem e derivam para onde a alma só é feliz, nas profundezas do Hades onde Euridyce se encontra...