domingo, 29 de junho de 2008

COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL EM DAVID LYNCH

David Lynch, Mulholand Drive
(VERTENTE PSICOLÓGICA)

CASO PRÁCTICO



Situação seleccionada do filme Mulholland Drive de David Lynch (2001)


Uma jovem rapariga (Betty) vai ao encontro de um grupo de pessoas ligadas ao cinema no intuito de se dar a conhecer e entrar num pequeno casting para um filme. Entra numa sala onde se encontram os vários interlocutores, a saber: Wally (o homem que faz as apresentações); Woody Katz (o actor que com ela vai contracenar); Bob ( o realizador); Lynne James (famosa agente de casting) e ainda quatro interlocutores pouco interventivos na interacção ( Julie Chadwick, Jack Tutman, Martha Jonhson e Nikki). A análise irá incidir principalmente em cinco dos interlocutores , por ordem de importância na interacção: Wally, Betty, Woody Katz, Bob e Lynne James.

ANÁLISE

Wally (o homem que faz as apresentações) – Tem uma postura expressiva, algo curvada devido à altura inferior de Betty. Faz gestos com as mãos aquando das apresentações. A dado momento adopta uma distância íntima relativamente a Betty, há contacto corporal, abraçando-a lateralmente, facto que dá indicações sobre a intenção de manter a conversação e de familiarizar Betty com a sua pessoa e com os outros. Adopta um tom de voz mais baixo e metódico relativamente a Betty, como se falasse a uma criança. Demonstra desta forma um certo sentido paternalista, pretende ser amistoso, colocá-la à vontade perante aquela situação de grupo.
Sorri frequentemente e de maneira expressiva, fala muito; é ele o mediador entre Betty e os outros, para ela desconhecidos; o cicerone que recebe aquela personagem e pretende causar laços de confiança ou até amizade. Fala a uma distância muito próxima de Betty, gesticula nas apresentações, ora apontando o dedo na direcção das pessoas que vai apresentando, ora movendo a mão com o mesmo objectivo. Pormenor curioso é visível aquando da apresentação do realizador, figura nitidamente altiva e autoritária que, mesmo sentado, sugere uma postura dominante-superior: Wally muda o tom de voz para mais grave e alto quando o apresenta, ao mesmo tempo que altera o gesto manual e até do tronco, como que em sinal de uma irónica veneração.
Ao apresentar Lynne, Wally mostra de novo alta expressividade, ora ao nível do tom de voz, ora das expressões faciais: falou como se estivesse a chorar, lamentando o facto de não poder comprar os serviços de Lynne e elogia-a na parte final da apresentação, facto que culmina na subida de tom de voz. Neste momento de interacção é interessante verificar as variações de postura de Wally, ao rodar o tronco expressivamente e ao curvar-se ligeiramente quando elogia Lynne. Este facto pode ser entendido à luz de Mehrabian (1972), o qual analisou a comunicação de atitudes (apreço e agrado) por meio de indicadores posturais, tendo concluído que a vizinhança física, um mais intenso contacto visual, uma inclinação para diante são tudo sinais que se destinam a comunicar uma atitude positiva perante o destinatário.
Outro autor, Scheflen (1964) considera a este respeito que o modo como um membro do grupo relaciona a sua postura com a do seu interlocutor pode ser um aspecto interessante do comportamento comunicativo.
Ao nível da orientação, outro sinal espacial, Wally coloca-se quase sistematicamente “lado a lado” com a sua principal interlocutora. Este tipo de orientação favorece, não só as apresentações, como vai de encontro à ideia expressa por Bitti e Zani de que “dois amigos íntimos ou duas pessoas em situação colaborante colocam-se lado a lado.”
Já na parte final da interacção, ou das apresentações, Wally intensifica alguns gestos que, à luz de Ekman e Friesen (1969) podem considerar-se ilustrativos. Tais gestos, efectuados com as mãos, servem precisamente para ilustrar uma mudança na interacção: o bater as mãos significa naquele contexto um incitamento à mudança de espaço por parte de Betty; podendo este gesto ser considerado também de simbólico. O contacto corporal inerente ao bater ao de leve sucessivas vezes nos braços da interlocutora pretende transmitir confiança e alguma empatia inerente a uma certa intimidade entretanto adquirida. Antes, ao oferecer café à sua interlocutora, Wally emprega semelhantes gestos manuais e também com a cabeça. Os gestos ilustrativos são aqueles que a maior parte dos indivíduos executa no decurso da comunicação verbal e que ilustram precisamente o que eles vão dizendo. Ainda à luz de Ekman e Friesen, poder-se-á considerar que, relativamente a Wally, muitos dos seus gestos poderão ter uma natureza de “adaptação”, ou seja, aqueles que são apreendidos geralmente na infância sendo parte de um modelo global de comportamento adaptativo, formando-se no adulto sinais habituais, geralmente inconscientes e que não pretendem comunicar nenhuma mensagem específica.
Alturas há em que o Wally utiliza aquilo a que Trager (1958) chama de caracterizadores vocais, os risos a sugerir contentamento, simpatia, etc. e secreções vocais como a interjeição que antecede a apresentação de Martha Jonhson, que é um sinal de lembrança súbita após aparente (neste caso) esquecimento.
Relativamente ao tom de voz e às suas características paralinguísticas poder-se-á concluir que as mesmas confirmam a classificação de Laver e Trudgill (1982) no que diz respeito a um timbre grave e com características típicas de um individuo do sexo masculino e numa idade já avançada. Sugere ainda o tom de voz alguma relativa emoção em alguns momentos da interacção, mas mais um contentamento e vontade de suscitar simpatia e confiança.
O comportamento mímico do rosto deste interlocutor está traduzido muito amplamente em sorrisos de circunstância, por vezes até forçados no sentido da instauração de um bom ambiente de grupo. É por este motivo, a juntar ao discurso algo exagerado e, num muito distante segundo plano, a um aspecto exterior algo descuidado ou descontraído, que este interlocutor parece suscitar algum desdém, indiferença e por vezes condescendência da parte grupo.

Betty (jovem rapariga que vai ao casting) – É uma jovem de agradável aspecto exterior e ambiciosa, não fosse ela capaz de se sujeitar à interacção apresentada. A sua mímica facial (boca entreaberta mesclada com o sorriso) no início da situação, mesmo antes da interacção, em que parece ficar deslumbrada a olhar para o sítio onde vai fazer o casting demonstra uma grande emoção por ela vivida naquela momento e deixa transparecer que um desejo seu está prestes a ser realizado. O respirar fundo e o olhar em frente mostra a determinação com que vai para àquele lugar, ao passo que a emoção demonstrada pela mímica facial, quando ainda não há interacção, pode remeter para um traço da personalidade de Betty. Bitti e Zani defendem o anterior conceito e juntam-lhe outro que também se aplica, na situação de interacção presente: o interagente vai mais tarde enviar sinais faciais inerentes à interacção em curso. Tal é o caso, por exemplo, do sorriso sistemático, sinal de cortesia nas apresentações e cumprimentos. Betty apresenta alguns sinais não verbais que são típicos de alguém que não se sente completamente à vontade num determinado espaço, o que se deve sobretudo ao facto de se sentir observada por um grupo de interlocutores que não fazem parte do seu território pessoal. Um desses sinais é a distância interpessoal que é instituída logo à partida por Betty. É certo que se trata de um ambiente que se pode considerar, à luz de Sommer(1961) e Little (1965), um ambiente privado, mas a privacidade individual da interlocutora parece ameaçada, daí o conservar de uma certa distância relativamente ao grupo, facto que não se verifica relativamente a Wally, pois é ele quem invade o território da recém-chegada. De resto, Betty não parece inicialmente muito à vontade perante essa invasão, por isso se retrai fisicamente, adoptando uma postura algo encolhida e de mãos inquietas a segurar as folhas que talvez sejam o guião do filme que se prepara para representar. O facto anterior vai ao encontro de Mehrabian (1972), segundo o qual, a postura varia com o estado emocional, especialmente segundo a dimensão descontracção - tensão. Voltando à ideia da invasão de território, Bonimo, Fonzi e Seglione (1982) consideram que uma forte vizinhança física constitui, fundamentalmente, uma forma de invasão do “território” pessoal do indivíduo, do qual tendem a ser excluídas as pessoas tidas por hostis ou antipáticas ou com as quais se tenha relações exclusivamente formais.
Relativamente ao comportamento motor-gestual de Betty, assinale-se os constantes acenos de cabeça, sinais não verbais que, segundo Bitti e Zani, são importantes indicadores sobre o andamento da interacção. Neste caso, simbolizam atenção ou assentimento perante o interlocutor (Wally). Argyle (1972) afirma que um aceno de concordância é um sinal enviado a quem fala para que confirme o seu discurso. Na presente situação de interacção, os acenos são também por vezes sinais de saudação ou cumprimento, sendo sempre complementados com os já referidos sorrisos. Para além disso, o olhar de Betty parece constantemente perscrutador, não querendo perder nada do que lhe é transmitido, nem dar uma imagem de indiferença. Essa atitude contempla primeiramente todos os presentes e depois concentra-se em Wally. A este propósito, destaca-se Exline (1972) que, com base em observações experimentais, concluiu que o ouvinte que não olha o falante dá uma impressão de rejeição ou de indiferença em relação a ele. Por outro lado, e segundo autores como Ricci Bitti, Giovannini e Palmondri (1974); Angyle e Cook (1976), as pessoas com forte tendência afiliativa, e as mulheres, mostram-se decididamente mais activas nos olhares recíprocos e não recíprocos.
É importante voltar ao comportamento espacial de Betty para analisar a parte final da interacção, quando a interlocutora muda de espaço e de interlocutor. Prepara-se nesta altura para a nova interacção, pondo-se mais confortável: tira a carteira e despe o casaco, dando a perceber que de seguida se vai concentrar no seu propósito: representar. Passa então a interagir directamente com Woosy Katz, o actor e, se anteriormente o contacto corporal com Wally era aparentemente amistoso, agora vai ser, ainda que encenado, um contacto de natureza sexual. A esse propósito, convém recordar Heslin (1974) e a já mencionada categorização do contacto corporal nas relações interpessoais. No que diz respeito à orientação e à postura, Betty adopta talvez inconscientemente uma postura algo retraída inicialmente, em parte devido à rápida invasão do seu espaço, mas também motivada pela orientação de cara a cara com um interlocutor que, naquela situação, está numa posição mais elevada (dominante) não só fisicamente, mas também profissionalmente. Gradualmente, a sua postura vai soltando-se após as indicações que recebe desse interlocutor, até tomar fôlego e cumprir o papel que lhe é exigido.

Woody Katz (o actor com quem Betty contracena)- Tem ares de gigolo do cinema, não só pelo aspecto exterior (bem vestido) mas também pelo rosto – a este respeito, Secord (1958) concluiu que existem estereótipos faciais -, e ainda pela postura e distância interpessoal. Para além de ser o único que, além dos dois principais interlocutores, se mantém de pé, Woody parece querer conservar distâncias relativamente aos outros.
Mas ele até começa por ser cordial (altivamente cordial) nos seus gestos, aquando da saudação a Betty: o seu movimento com as mãos e o aceno da cabeça parecem querer sugerir simpatia e um certo sentimento paternalista relativamente à interlocutora, bastante mais nova. De resto, estes gestos poderão também ter uma natureza sexual.
Na parte final da interacção apresentada, Woody adopta uma orientação “cara a cara” relativamente a Betty, o que atesta a ideia de Bitti e Zani de que numa relação hierarquizada o superior coloca-se em frente do dependente – inferior. Mas talvez a teoria defendida por Scheflen (1964), Argyle e Dean (1965) tenha uma melhor aplicação a esta situação: segundo estes autores, a orientação cara a cara no encontro de duas pessoas, está provavelmente correlacionada com a distância recíproca e a intensidade de participação mútua.

Bob Rooker ( realizador) - O seu silêncio, o leve aceno da cabeça aquando da apresentação a Betty, bem como uma postura física algo rígida sugerem uma atitude de superioridade e altivez, pelo menos inicialmente. Contudo, a sua postura dominante e passivamente autoritária vem a degradar-se com o decorrer da interacção, nomeadamente quando passa à comunicação verbal; aí demonstrando uma intensidade de voz, uma entoação e um ritmo muito pausado a querer suscitar sabedoria e inteligência que, a juntar a aspectos não verbais algo exagerados como olhar fixo e os movimentos da cabeça e mãos, acaba por provocar silêncio e olhares irónicos na plateia. De resto, antes disso, a sua postura é sempre de observação, mas uma observação que soa a avaliativa e é feita de um pedestal superior -aspecto este atestado pelo gesto da mão sob o queixo.
Bob, à semelhança de outros interlocutores não parece ser uma figura muito admirada ou sequer respeitada dentro do grupo apesar de, como já foi referido, raramente usar da palavra durante a presente interacção. Aliás, a este respeito, importa referir a multiplicidade de significados que o silêncio pode tomar no âmbito da interacção: segundo Bruneau (1973), o silêncio pode exprimir uma atitude cautelosa e atenta perante o interlocutor.

Lynne James (famosa agente de castings) – Torna-se importante fazer uma pequena análise a este interagente na medida em que no pouco tempo de interacção mais activa utiliza sinais não verbais pertinentes e merecedores de alguma atenção. Para além da sua postura, aspecto exterior e tom de voz a demonstrar segurança e um nível social alto, a distância corporal para com a sua assistente ( Nikki) indicia a proximidade da relação entre ambas. Quando confrontada com Betty, Lynne baixa ligeiramente a cabeça em sinal de saudação e não abandona o seu sorriso e expressão facial a suscitar simpatia e alguma condescendência perante alguém de posição social (profissional) inferior. A anterior atitude torna-se nitidamente irónica perante os exagerados elogios de Wally: o sinal é a rápida gargalhada simultânea ao agradecimento verbal. De resto, o seu tom de voz torna-se mais suave quando se dirige a Betty, pois acabou de lhe ser apresentada.


rodriguez 2004

terça-feira, 24 de junho de 2008

DOGMA 33

O rapaz chega ao quarto claro, senta na cadeira de madeira, olha para o tecto com as mãos na cara. Correm algumas lágrimas, fica sentado meia hora. Olha em várias direcções, nas paredes só figuras normais. Mais algumas lágrimas que baixam ao queixo, as mãos conseguem amparar outras. Parece meio sufocado pelo escuro que chegou devagar.
O silêncio debaixo da cadeira de madeira vai subindo, ao longe a novela brasileira. Não pertence ali, porque se levanta e desce um túnel que conduz à noite. A cave. Fala aos degraus, confessa tristeza. Agarra o corrimão com a mão molhada de lágrimas salgadas. A madeira do corrimão é a mesma da cadeira, corroída pelo sal dos olhos. A sua pele é rugosa, rugosa só. Rugosa significa desidratada e gasta, corroída talvez pelas lágrimas.
Na manhã seguinte, quarto mais claro, paredes normais, cadeira nada mais rugosa, na mesma. Tudo igual. Apenas as lágrimas secaram. Mostra um sorriso numa manhã com um sol de 20 graus e de olhos semicerrados. Veste uma camisa preta, umas calças azuis e uns sapatos meio esfarrapados mas não pelas lágrimas, pelo pó. Corre para fora do quarto, cheira o ar e os odores de algumas poucas flores que estão ali. Ao longe um homem cava numa terra que não chega a ser completamente verde ao som leve da sirene dos bombeiros que estão mais longe. O homem cava curvado com uma enxada de cabo de madeira que um dia foi rugosa mas de ser nova, agora lisa do uso por mãos rugosas.
O rapaz cheira as flores e ouve a sirene, olha o homem e o espectro da enxada, e pode-se dizer que não sente nada. À noite sim, aí as lágrimas e a lembrança da madeira rugosa ou lisa ou as pétalas rubras guardadas no bolso da camisa.
(Rodriguez 2008)

sábado, 21 de junho de 2008

Saudade


Volta espuma negra que consome o peito agora lembrado do passado ofuscante e sufocante onde pássaros negros de cores rosadas dançam por colinas que são sábias que são altas próximas do além uno
E o sentimento de saudade a saudade sempre quente mas esquecida da
(felicidade efémera e melancólica)
Sempre serei esgar dessa espuma vulto curvado oriundo da terra que é feita de mágoa dobrada de água Olho perco a olhada num tempo eterno de madrugada nocturna e soturna sentindo o fundo do peito cada vez mais perto porque aberto desperto ameno calor noite de amor esquecida na lua perdida
A vida que fura por entre devaneios obtusos dormentes gestos sonhos lestos
Arestas de amor feitas de letais vértices de dor amargo vaguear
E à noite durmo por entre pontos curvos pintados sonhando ter encontrado enfim
Assim
Como este som grave autocarro de almas que não querem ficar aqui
Neste tempo
Tormento
Lento
Volta.
(rodriguez Maio 2008)

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Crise

A crise faz-nos vaguear por uma existência limitada em termos materiais, obviamente; atormenta-nos o sono e as horas imensas de trabalho, que se arrasta até a um quase pôr-do-sol que é uma vaga de ar fresco ao fim de mais uma jornada onde tudo parece cinzento, repetitivo, rotineiro ao limite. Rotineiro porque não parece haver esperança.
O maldito crédito subprime americano, que é indissociável da hedionda subida das taxas de juro e da baixa dos mercados bolsistas que conduz ao aumento brusco do preço do petróleo, alterou toda a economia mundial. Este claro sinal da globalização imposta progressivamente pelos americanos é paradigma de uma nova ditadura que, apesar de tudo, nem é capaz de chegar aos países produtores de crude, cuja flexibilidade na oferta desse produto é como se sabe limitada. Daí a subida desenfreada do ouro negro.
Sem querer entrar em teorias políticas para as quais não creio ter vocação, sempre considero a globalização um factor de desagregação, não só cultural, mas também económica. Porque a liberdade comercial sai claramente afectada nesta dependência dos mercados americanos, como se uma peça de dominó caísse e fizesse desmoronar todo o resto. Enquanto português e europeu, sinto-me obviamente condicionado pela americanização do mundo onde vivemos, onde os mais poderosos ditam leis. Aquele adormecimento de que falava no início do texto é resultante do fenómeno anterior. Tudo é monótono e previsível, como se o nosso planeta fosse uma laranja mecânica onde tudo funciona em aparente harmonia. Aparente, sim, apenas. Estamos cada vez mais próximos da realidade profetizada pelos irmãos Wachowski, onde o ser humano é controlado por uma máquina que, neste caso, é uma máquina humana e de interesses económicos. Será a mente humana capaz de se libertar da opressão do tédio americano? Creio que sim, porque é uma mente complexa e inventiva, que passa por estados de adormecimento para depois acordar e se revoltar. A história prova-nos isso. A crise será fugaz também, acredito.
Portugal, pobre país da fragilizada Europa, sofre. Sofre porque a gasolina é mais cara do que em Espanha enquanto o salário mínimo é mais baixo. Que destino cruel este de um povo que parece ter a vertigem do sofrimento, o fado que também se arrasta pelo tempo fora. Já senti muitas vezes que teria sido benéfico para nós se essa mesma história nos tivesse conduzido a uma ausência de D. Afonso Henriques, a um país-potência que teria sido a Península Ibérica. Mas depois penso numa identidade que é de facto forte dentro da sua fragilidade. Portugueses são homens bravos que lutam pela vida como guerreiros cujo poder é incerto porque sofre com circunstâncias adversas. Lembro-me de palavras proferidas por génios lusos, desde Pessoa até Virgílio Ferreira ou Sophia. E sinto algo cá dentro, como quando se ouve o hino num campo verde rodeado de uma turba embalada pelo sentimento patriótico. Acredito que esta nossa capacidade de sofrimento, espírito de sacrifício é um dom tão belo como o fado. A bonança virá, só pode vir.