sexta-feira, 16 de maio de 2008

Parágrafo (conto)

Maria sabia que não podia utilizar mais palavras para convencer o pai que dera abrigo àquele pobre homem porque ele estava encharcado e com aspecto muito decadente e frágil. O pai era muito severo, tinha a aura dos líderes incautos, ditadores caseiros que ferem com um simples olhar. Maria temia as represálias. Silenciou a voz suplicante mas terna e irradiante de honestidade. Era tarde, ele até estava fatigado pela faina da liderança rústica. Então ela respirou fundo e enfrentou a hora com coragem. Era uma moça consciente da responsabilidade com que a vida a tinha marcado. Enquanto mulher-divindade, tinha a castidade mas o furor da juventude, era humana, era carne e isso é um fardo. O mísero vulto que batera à porta seria a representação de um mito, o pedinte desprotegido, banido pela classe social que vagueia mais ou menos à toa pelos amargos e incertos ramos da planta mestra de tudo o que existe. Procurava talvez a torre onde tudo é decifrável, de rosto maleável e gasto pelos caprichos das horas. Bateu, de um bater incerto e forçado pelo instinto. Ela abriu, num movimento veemente e ardente, ansiando por Primavera. A máscara do pobre aparente homem caíra no preciso momento em que disse algumas palavras desarticuladas. Maria entregou o seu olhar àquele coração. Suspirou e lamentou interiormente sua sorte. O amor é um sentimento traidor, porque não tem condição nem princípios. O homem temia ter encontrado a morte naquele dia de atmosfera sombria. Desejou-a como quem deseja uma mulher voluptuosa e susceptível. Era a sua salvação. Mas Maria era vida. Entrou a pedido dela. Falou-lhe do seu destino de infortúnio e dor. Amor, nunca tinha conhecido, porque soube cair no seu estado marginal com competência. Nenhuma mulher alguma vez olharia para ele sem o sentimento da piedade. Bebeu um café que cheirava a rosas secas e ao sorvê-lo sentiu uma doce pulsação que podia entreabrir naquele instante as portas ao amor. Bastava um olhar terno. Mas o olhar não chegou naquela fracção de segundo. O Acaso, sempre leviano, impediu de forma descarada o florescer desse sentimento tão ardente quanto letal. A competência venceu mais uma vez. Mas a sorte é efémera. Um dia o mendigo seria vencido. Talvez pelo amor. Talvez pelo Acaso.
(27 Jan. 2008)

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